quinta-feira, 24 de junho de 2010

Crônica

Sempre que o despertador toca é um “Deus nos acuda”. Não que eu acredite em Deus ou coisa parecida, mas a expressão se encaixa perfeitamente no meu começo de inferno. E todo dia é assim. Poucos minutos para jogar uma água no corpo, escovar os dentes, prender o cabelo, me vestir e sair. Necessariamente nesta ordem, pois de manhã as coisas precisam ser assim. Uma hora e meia no ônibus lotado e mais quinze minutos andando até o trabalho. Percurso perfeito para acender um cigarro quando na verdade já estou querendo fumar o maço inteiro. Nove horas trabalhando tão longe que todo dia posso até jurar que vejo as botas de Judas pelas esquinas. O tempo passa e nada acontece, literalmente, inclusive nos finais de semana.

Às vezes, me limito a trocar duas palavras com a tia que vende pão francês com queijo prato, a um real. Ás vezes, eu me permito o silêncio, apenas apontando o pão e entregando o dinheiro. Descrente dos sonhos e das grandes mudanças, eu já não visito a esperança. Então, um dia, andando distraidamente pelo longo percurso de volta, cigarro na mão e pensamentos vazios, ouço uma voz:

- O cigarro mata. Ele disse.

Sem olhar para o rosto cuja voz me recriminava, limitei-me a dizer friamente:

- Eu sei.

Continuei andando e senti passos atrás de mim. Outra vez a voz:

- Então porque não pára de fumar? Ele insistiu.

Parei (de andar). Respirei fundo para dar tempo de pensar em uma resposta malcriada e me virei. Olhei de baixo para cima, devagar. Os sapatos, a calça e, principalmente, o perfume, me deram mais três segundos de silêncio. Cheguei ao rosto, aos olhos. Estátua. Seria ele a versão masculina da Meduza? Eu não podia me mexer. Não podia respirar. Jamais havia presenciado tamanha beleza. Pessoalmente parecia-me impossível que um homem, de carne e osso, pudesse ter traços tão perfeitos e olhos tão cintilantes. Brilhavam ao ponto de me cegar, mas eu queria ver. Queria analisar cada centímetro daquele ser. Estava me sentindo a “Bella com seu Edward”, no entanto, podia sentir a alma daquela criatura divina invadindo o meu corpo, sem permissão. Corei pelos pensamentos e imagens que produzi na escuridão da minha mente. Já não podia responder malcriadamente àquele homem que era um espetáculo. Um homem saído diretamente da Grécia. Diante do meu bloqueio físico e mental, ele repetiu a pergunta:

- Então porque não pára de fumar? Como se fosse um pedido carinhoso e não uma pergunta.

Quase gaguejando, respondi:

- Porque não.

Pronto. A merda estava feita. Ele me olhou com aquela cara de interrogação, virou de costas e saiu. Eu, na minha santa ignorância, espantei para todo sempre o homem que seria o pai dos meus dois filhos ou três ou dezoito, não importava. Em questão de segundos eu havia conseguido reverter toda a monotonia da minha vida em proporções tão grandes que cheguei a estender a mão para chamá-lo de volta e começar a conversa novamente. Braço estendido e voz embargada, ele se foi. Fiquei olhando o único deus em que eu poderia acreditar ir embora ao horizonte. Enfim, veio a resposta à pergunta dele na minha cabeça: Por que eu não parava de fumar? Porque depois de uma merdalhada como essa, só me restava mesmo acender outro cigarro.

13/05/2010.